quarta-feira, 12 de dezembro de 2018




Amazônia: CICLO DA BORRACHA
Lutas, sonhos e dramas humanos

Mão de moça dada em hipoteca em seringal

Em todos os tempos, em todos os lugares onde houver duas pessoas de sexos opostos, existirá sempre a possibilidade da fagulha da paixão se acender. A atração entre homem e mulher é um fator de aproximação de almas, um ingrediente difícil de se explicar, uma condição que determina a construção da célula básica da família, que é a união de duas pessoas. A família e a sociedade são formadas a partir da existência dessa célula, que se forma a partir de uma energia produzida na usina do nosso corpo que é o nosso coração.

Essa história é mais uma das que selecionamos no livro SAPUPEMA – Contos amazônicos, do escritor José Potyguara, que reproduzimos por explorar esses temas que são próprios e intrínsecos à nossa vida que é o amor, a paixão, o namoro proibido entre duas pessoas.

Todo o seringal sabia da grande paixão do Elias Bichara pela Isaura do velho Leocádio. O próprio sírio não fazia segredo disso. Regateando, rio acima, rio abaixo, toda vez que por ali passava, seu batelão demorava no porto semanas inteiras. Quando via Isaura, só faltava comê-la com os olhos. Se a moça ia ao regatão, fazer alguma compra, Elias desmanchava-se em gentilezas e enchi-lhe de presentes. Sempre que em sua presença, alguém aludia à beleza de Izaura, o sírio logo comenta, entre suspiros:

- Morena bonitinha, muito zimbática!
Dedicando a Ricardo um sincero amor, Isaura fingia não compreender os galanteios de Elias. Seringueiro trabalhador, rapagão forte e desempenado, peito largo e olhar franco, mais simpático do que bonito, Ricardo era o ideal de todas as moças daquela redondeza.

Além do físico insinuante, possuía outra qualidade que era um fascínio: tocava viola e cantava admiravelmente. Ninguém melhor do que ele dedilhava o mágico instrumento. E quando em noite de luar, ele entoava uma canção sentimental, sua voz tem tal meiguice, um quê de enternecedor, um feitiço, mexendo com o coração das mocinhas. Mas indiferente ao círculo de suas admiradoras, Ricardo amava unicamente Isaura.

Nem sabia dizer como nasceu aquilo. Começou por simples amizade, logo transformado em amor puro, sincero, espontâneo. Os seus olhos se procuravam assiduamente e, cruzando-se, logo se evitavam, para novamente se procurarem. Certa vez, ao anoitecer, voltando da estrada de seringa, Ricardo encontrou Izaura apanhando flores junto ao jasmineiro. Alí mesmo, perante as estrelas, selaram com o primeiro beijo o juramento de um grande amor.
Depois, como que arrependida de ter se deixado abraçar, Izaura empurrou Ricardo, fingindo-se amuada:

- P’ra que você fez isso? T’aí, machucou os jasmins todos! E os dois puseram-se a juntar as flores dispersas pelo chão.
Alimentando com carinho a chama do amor que lhe aquecia o peito, Izaura nem se apercebia do sofrimento de Elias, cada vez mais apaixonado. Ignorando a difícil situação financeira do pai, não sabia ela que, só ao sírio, ele devia trinta contos de reis.

Após a falência do seu império, Leocádio não demonstra o menor esforço. Enfastiado da vida, comprou o seringal menos para fins industriais, do que para refúgio, onde pudesse esconder a vergonha de sua derrota. Arrendou as estradas a meia dúzia de seringueiros que lá encontrou. A renda mal dava para o sustento da família. Sem dinheiro nem crédito, mas também sem dignidade nem escrúpulo, vivia de expedientes, explorando a louca paixão de Elias pela filha. O sírio era o único comerciante que ainda lhe vendia fiado e lhe emprestava dinheiro. E Leocádio abusava, cinicamente. Já reformou, três vezes, as promissórias de sua dívida, com os juros acumulados.

Mas Elias já estava cansado de suportar a velhacaria do pai e o desprezo da filha. Resolveu colocar um paradeiro. As promissórias estavam às vésperas do quarto vencimento. Ou Isaura, ou o seu dinheiro. Ou Leocádio lhe dava a filha em casamento, ou ele requeria a penhora do seringal. Com essa disposição, esperou Leocádio. Antes do almoço ele ia ao regatão, para o infalível cálice de conhaque, e o sírio aproveitou o momento:

- Goronel gonhece dificuldade gomercio. Não leva mal eu fala nosso negúcio. Eu brecisa receber aquele dinheiro.

Repetindo as mesmas lamurias de sempre, Leocádio responde:
- Ora, Elias! Não posso ainda. Tenha paciência. Vamos reformar as promissórias.

- Baciênca, eu? Já teve demais goronel. Olha: já reformou bramissora três vez!
- Quem reforma três, reforma quatro. Eu pago juros.
E Elias decidido:
- Não goronel. Não bode esperar mais. Se senhor não bode pagar, eu aceita seringal. Brajuíza bra eu. Jura bra Deus!  Sua debito trinta contos. Zeringal não vale isso!
Estranhando a insistência do sírio Leocádio baixou a cabeça, preocupado. Decorridos alguns momentos de silencio, Elias levanta-se e, timidamente, pondo a mão sobre o ombro do velho diz:
- Que é isso goronel? Não brecisa ficar triste! Eu brobõe outra solução.
- Qual?
- Goronel bromete não fica zangado minha brobosta?
- Acho que não há motivo para zanga!

Mais confiado, Elias senta-se junto a Leocádio e diz em voz baixa:
- Nós bode resolve isso em família.

- Em família como?
Vencendo o acanhamento, o sírio explica:
- Goronel tem filha moça...bonita.... Eu zimbatiza muito seu filha Isaura. Nois casa de depois faz suciadade: goronel entra com seringal, eu entra com mercadoria. Bramissora sua debito desaparece. Fica tudo direitinho, em família. Leocádio nada responde. Acende um cigarro e fica fumando e ruminando as palavras do sírio. Ao sair diz:

- Bem, vou pensar sobre a nossa sociedade. Você compreende: é assunto importante. Preciso resolver com calma. Amanhã darei a resposta. E quando transpôs a prancha do regatão e subiu o barranco, já estava resolvido a acelerar a proposta. Julgava aquilo uma solução salvadora. Sentiu ímpeto de voltar e beijar o sírio. Em todo caso, como se tratava do futuro da filha, resolveu primeiro comunicar à esposa.
Isaura sempre teve horror ao pai. Não era ódio, mas uma espécie de tímida repulsa que nela se arraigara desde cedo. De sua infância, em Belém, guardava desagradável lembrança dos beijos que o pai lhe dava, impregnando-lhe o rosto com um insuportável hálito de vinho e sarro. Temperamento seco, habitualmente irritado, Leocádio nunca soube se fazer estimar pela filha. Transformava-se, porém, sob os efeitos do álcool. Era sempre nesse deplorável estado, ao retornar de suas libertinagens, que tinha derrames de ternura para com a menina. Ao invés de atraí-la, causava-lhe asco.
Depois, à proporção que crescia, Isaura foi observando muita coisa, embora não pudesse ainda compreender o drama que se desenrolava no cenário doméstico. Várias vezes, surpreendeu a mãe chorando. Uma intuição lhe dizia que era o pai o causador daquelas lágrimas. Mais tarde, aquela viagem à Europa, o abandono da família, os comentários que ouvia, foram completando seu conceito sobre o caráter falho de Leocádio.

E agora, agora, moça feita, por mais que se esforçasse, não conseguia equiparar em seu coração, o grande afeto que consagrava à mãe, sempre tão boa e carinhosa, ao sentimento de simples respeito que tinha pelo pai.

Ele, há muito tinha percebido isso. Mas não ligava nem procurava remediar, impondo-se à estima da filha. Mesmo porque, em consciência, achava natural que ela gostasse mais da mãe do que dele. Assim, quase sem se falar, pai e filha viviam num círculo vicioso: ela não se aproximava por medo, ele fogia dela porque percebia o pavor que lhe causava. Sentindo-se sem autoridade para tratar com a filha sobre o casamento, Leocádio prefere encarregar a mulher dessa incumbência. À noite, chama dona Sancha para o pequeno escritório, nos fundos da casa e tranca-se por dentro. Contando encontrar barreira na consciência reta da esposa, principia desajeitado, com certa cerimônia, procurando dissimular, sob fingido zelo pelo futuro da filha, a finalidade vergonhosamente mercantil do assunto.
- Sabes, minha velha, estamos no fim da vida. Tenho pensado muito em nossa filha. Quando morrermos, que será dela?
- O que Deus quiser! – responde a mulher, num suspiro de resignação.
- Sim, mas...precisamos ampará-la por um bom casamento.
Habituada a grande indiferença do marido pelo bem-estar da família, dona Sancha fita-o demoradamente, procurando ler-lhe na fisionomia a explicação de tão estranha atitude. 

O olhar interrogativo da mulher desconcerta Leocádio. Esperava que ela dissesse alguma coisa; concordasse com a necessidade que ambos têm de amparar a filha; encaminhasse enfim, aquele entendimento a completo êxito. Para disfarçar seu embaraço, Leocádio abre um jornal e folheia ao acaso. Afinal, vendo que ela não fala, resolve atacar o assunto, diretamente:
- Sabes¿ Hoje pela manhã, o Elias Bichara me pediu Izaura em casamento. Surpreendida, e sem querer acreditar, dona Sancha pisca, pisca, várias vezes e pergunta:
- Quem? O turco do regatão?
- Sim – responde Leocádio, sem coragem de tirar os olhos do jornal.
- E é a isso que chamas um bom casamento? Um turco velho, feio e analfabeto...
- Ora mulher! Mocidade e beleza não enchem barriga. Em compensação, Elias é rico; pode dar à nossa filha muito mais conforto do que nós. É um ótimo casamento.
- Uma verdadeira desgraça, com a qual não podemos concordar! – replica a mãe.
Leocádio sente que está perdendo terreno. Resolve apelar para outro argumento. Aproxima a cadeira e, imprimindo à voz o timbre mais adocicado que pôde arranjar, recomeça:

- Mas Sancha, precisamos considerar nossa situação. Tu sabes: eu devo ao Elias trinta contos de reis. O turco tem sido muito paciente. As promissórias vão se vencer pela quarta vez. Se não lhe pagarmos agora, ela toma o seringal e nós ficamos na miséria, sem ter para onde ir.

- E que tem isso com o casamento?
- Perguntou ela.
- Ora filha! Então não compreendes? Passando ele a nosso genro, a dívida fica em família e faremos uma sociedade para explorar o seringal. A proporção que se vai inteirando da torpeza do plano, dona Sancha fica rubra de raiva. Todo o seu busto estremece, o olhar cintila, a respiração torna-se ofegante. Afinal, não podendo mais conter-se, explode:

- Isso é uma indignidade! Uma vergonha! Então você quer vender sua filha a um turco, por trinta contos de reis? Que qualidade de pai é você? Nunca a estimou, eu bem sabia. Mas francamente, não o supunha capaz de tanto! Mas, eu sou mãe. Criei-a em meus braços, sustentei-a com meu leite. Tenho ao menos o direito de protestar contra o ato crapuloso do pai que vai vender a filha!
Exausta, quase desfalecida pelo esforço e a comoção, a boa senhora cai sobre a cadeira, numa crise de pranto convulso. Ante a atitude enérgica da esposa, sempre tão dócil e paciente, Leocádio descontrola-se, volta à habitual brutalidade e berra, dando um murro sobre a mesa:
- Pois há de casar-se com o turco, porque eu quero! Eu bem sei dos amores de Isaura pelo Ricardo, um seringueiro à toa, um banga-la-fumanga sem vintém! Sei também que você alcovita esse namoro! Pois bem: amanhã vou dar o “sim” ao Elias. Você que trate de convencer sua filha. O casamento se fará, quer queiram, que não. E depois, se você, ela e o Ricardo não gostarem, que vão para o diabo que os carregue!

E saiu batendo a porta com força.

Quando se espalhou a notícia do noivado, foi grande a celeuma em todo o seringal! Os comentários surgiram, cada qual o mais malicioso: - O que está me dizendo? A Isaura, tão bonita, casar com aquele turco de venta de tucano?!...
- É só pro via do dinheiro! O turco é rico.
- E o pobre do Ricardo! Tanto bem que ele quer à Isaura! Bichinha ingrata!
- Ela não tem culpa, coitada! Vai casá à força. O pai obrigou.
- Obrigou? Credo!
- Obrigou, sim. Dis’que pru via duns dicumento. Não vê que o coroné Leocádio deve uns contos de réis ao turco? Apois é. Entonce, combinaram o casamento e fica tudo pago.
- Tibes vote!...Que coroné severgôin! Entonce ele vai niguciá a fia?...Ist’é um iscandêlo!
Leocádio queria fazer o casamento imediatamente. Mas Elias objetou:
- Esbera pogadinho, goroné. Eu deseja faz gasamento direitinho, com bonita festa e gonvite bra todo bessoal.

Marcaram prá noite de natal, quando o padre deve vir ao seringal, celebrar a missa do galo. Faltam apenas quinze dias. Começaram os preparativos da festa e da noiva, tudo à custa do noivo, que está numa generosidade sem limites. Comprou e mandou para casa do futuro sogro, dois bois três grandes cevados, duas dúzias de galinhas e um Peru. Contratou vários tocadores e mandou convidar toda a população do seringal e da vizinhança.

A generalidade dos convites envolve um intuito especulativo: cada convidado é freguês a comprar no regatão, o necessário para comparecer decentemente. Em poucos dias, o sírio recuperou as despesas da festa, esgotando o velho sortimento de chitas e riscados que mofavam nas prateleiras do regatão. Ninguém quer ir ao casamento sem estrear um vestido novo. Esperada com ansiedade, a festa é o assunto. Só Ricardo não participa da alegria geral. Residindo com sua mãe, numa pequena barraquinha, do outro lado do rio, nunca mais pode ver Isaura. O pai conserva-a sob rigorosa vigilância e dona Sancha receando alguma violência do marido, mandou prevenir a Ricardo que não aparecesse no barracão.

Desde esse dia, o rapaz não teve mais ânimo para nada. Não trabalha, não dorme, quase não come. Vive pela mata, como um desvairado, evitando as estradas, fugindo quando alguém se aproxima. Só alta noite aparece em casa e chama pela mãe, que cheia de susto, vem abrir-lhe a porta. A pobre velhinha compreende o sofrimento do filho, mas nada pode fazer. Reza, implorando a benção de Deus para ele.

- Viva os noivos! ...
- Viva! ...
Dez horas da noite. A festa está no auge da animação. O terreiro, o alpendre, a grande sala do barracão do coronel Leocádio regorgitam de convidados. A algazarra dos dançadores se mistura ao som das violas e harmônicas, pandeiros e ganzás. Sentado no sofá, ao fundo da sala, o Elias, radiante de satisfação, recebe cumprimentos de todos. A seu lado, Isaura olha com inveja a alegria das amigas, que passam, dançando. Está ainda, mais bonita. O corpo, elegante e bem talhado, era um fascínio, dentro de um vestido justo de setim branco, que caía por trás, em graciosa cauda. Um verdadeiro contraste, ante a figura angulosa e cabeluda do noivo.
De quando em vez, velhas linguarudas vêm da cozinha, arriscar um olhar curioso pela sala. Intrigadas com a desigualdade do casal, voltam resmungando:
- Credo! Mal-empregado!
Fazendo as honras da casa, o coronel Leocádio, já meio inconsciente pelo excesso de conhaque, vai e vem, por entre os convidados, servindo a este, obsequiando aquele, os olhos muito vermelhos, a fala pastosa. Está em seu elemento. A festa, a fartura de bebidas, recorda-lhe sua vida libertina, em Belém, quando tinha dinheiro e importância.

Enquanto os dançarinos de divertem, o padre Victor, velho missionário francês, aguarda a hora da missa, lendo seu breviário na sala de jantar, longe do burburinho profano do baile.

Quase meia noite.

Contrafeitos os convidados, interrompem as danças, para que o sacristão prepare o altar. Isaura pede licença para retirar-se, alguns momentos, a fim de ir ao quarto, colocar o véu e a grinalda.

Sobre uma mesa é improvisado o altar, com um crucifixo, dois castiçais e alguns jarros de flores. Junto do altar, duas cadeiras e um tapete para os noivos. Aos poucos a sala vai se enchendo. As velhas, que, por ocasião das danças, não ousavam penetrar ali, disputam, agora, os primeiros lugares, para melhor ouvirem o sermão do “seu vigário”.

Tudo preparado, as velas acesas, o padre vai começar a missa.

Falta, porém, a noiva, que continua trancada no quarto. Aborrecido pela demora, o coronel Leocádio resolve ir buscar a filha. Diante da porta fechada, chama uma, duas, três vezes. Bate com força. O mesmo silêncio. Aflito, chama dois homens e manda por a porta dentro. Ninguém no quarto. Sobre uma cadeira, junto à janela aberta, o véu, a grinalda, dos sapatos brancos, o vestido da noiva e um lacônico bilhete: “Papai, vou com Ricardo, para a cidade, onde casaremos amanhã. Quero dizer para o senhor que amor não se compra. Izaura”

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