quarta-feira, 12 de dezembro de 2018




AMAZÔNIA: Ciclo da Borracha
Lutas, sonhos e dramas humanos


Os desgostos do Arigó BAZILIO

Linda tarde de setembro. Pleno verão. Céu claro de azul turquesa, limpo, sem nuvens. Na praia da margem oposta um bando de garças mira-se no espelho das águas do Tarauacá. Após forrar cuidadosamente, com um velho tapete, o banco onde me sentei, o Bazilio recolhe o ancorote e impele a canoinha para o meio da correnteza. E enquanto a frágil embarcação vence a largura do rio, eu contemplo a figura exótica do pobre remador, sentado na proa.

Baixo, franzino, cabeça chata, boca larga, olhos pequeninos, aquele amarrotada carcaça encerra um belo coração. Quando o conheci, já o Basílio desempenhava aquela modesta função. Entra semana, sai mês, e ele sempre na mesma atividade, levando e trazendo passageiros de uma a outra margem do rio. Todos o conhecem. Sua utilíssima canoinha é um flutuante traço de união, ligando os dois bairros da pequena cidade acreana.

Ali está ele, na labuta diária, a blusa molhada de suor, ritmando o vaivém do corpo com o monótono bater do remo na falca da embarcação.
Para puxar conversa, pergunto:
- Há quantos anos está no Acre, meu velho?

Sem parar o remo, ele responde por cima do ombro:
- Nem sei moço. Faz um tempão. Eu vim do Ceará inda frangote.
- É casado?
- Inhor não. Sou sozin neste mundão de Mazona. Pru causa de casamento...é que eu ando penando por essas parage...
      O tom reticente e magoado da última frase revelou profunda cicatriz na alma do pobre caboclo. Atiçado pela curiosidade, arrisco outra pergunta:
- Mas, por que não casou¿ A noiva morreu?
Ladeando a margem do Muru, a canoa desce veloz, ao sabor da correnteza. O Basílio d escança sobre as pernas o remo gotejante e responde, num longo suspiro:
- Antes tivesse morrido!...

Depois, pausadamente, os olhos fitos na água do rio, desabafa, confidencial:
- Ah! Meu moço! Minha história é bem triste! Não conheci pai. Meu pai morreu na seca dos três oito. Eu tinha cinco anos. Toda herança que nos deixou foi uma casinha de taipa. Viúva, pobre e sem amparo, minha mãe vendeu a casa e nóis passemo a mora como agregado, na fazenda de meu padin Praxede. 

Lá eu conheci Maria Fulô, a fia mais nova do vaqueiro. Tinha a mesma idade que eu. Crescemo junto. O tempo se passou. Maria Fulô de botão tornou-se uma rosa. Ficou moça e bonita. Era a morena mais famosa de toda aquela ribeira. Eu pensava que estimava ela só como irmão. Puro engano! Na festa, quando ela dançava duas vez com o mesmo rapaz, eu ficava danado! Duma feita dei uns tabefes num primo, só pruquê ele disse que ia casá com ela. E foi o ciúme que me convenceu que eu amava Maria Fulô. 

Descoberto o namoro, o pai dela se opôs. Dizia que eu era um fedelho, sem pai, sem vintém, não podia casá. Mas nós continuemos a se querê escondido. A mãe dela era minha madrinha de fogueira e gostava muito de mim. Ia tudo bem. Mas, vosmicê sabe: amô enche coração, mas não enche barriga. 

Eu precisava casá e num tinha com quê. Nunca fui preguiçoso. Empreitava trabaio, broca de roçado... o que aparecia. Mas muito mal dava pra sustento meu e de minha mãe. Por esse tempo apareceu no povoado um paroára rico, contratando gente p’ra trazê p’ro seringal. Contava mil vantage disso aqui. Eu me influi e dei meu nome.

Minha mâe, quando soube, quaje fica maluca. Pediu, por tudo, que eu não viesse p’ra terra da sezão. Mas eu tava resolvido. Minha tenção  era demorá aqui pouco tempo e voltar rico, promode casá com Maria Fulô. Poucos dias antes de eu embarca, o pai dela morreu espetado nos chifres dum touro. Eu não podia demora a viagem. Na hora da despedida, dixe p’ra ela: “ Maria confia em mim. Eu vou e volto, com o pensamento em ti”. Ela saluçava, com a cabeça no meu ombro. Vim m’embora. Chegando aqui, atirei-me ao trabaio. 

Não perdia tempo. Eu era moço, tina u’a saúde de ferro. Cortava seringa até de noite. Toda vez que eu mandava dinheiro pra minha mâe, mandava também p’ra Maria. Além de pobre, ela num tinha mais pai. Naquele tempo não havia correio p’ra cá, como hoje. Só se recebia carta u’a ou duas vezes por ano, quando o navio do patrão vinha do Pará. Assim, u’a carta de janeiro chegava ao seringal, as vez, em agosto ou setembro. 

Minha mâre num sabe lê como eu tombém num sei. Sempre me abençoava e me mandava notiça nas carta da Maria. Quem lia as cartas p’ra mim era o seu Otávio, o gerente do seringal. Lia de vaga, duas, três vez, repetindo os pedaço que mais me interessava.  Dispois, ele mermo arrespondia o que eu ditava. Assim, passou-se cinco ano. E eu sempre lutando, culumizando, no firme preposto de volta e me casá. No fim do ano, chegou o navio. Trouxe carta p’ra todo mundo. P’ra  mim... nada. Fiquei sem jeito. Pruquê rezão Maria não me escreveu? Mandei seu otávio fazê u’ma carta bem queixosa p’ra ela. E continuei a manda dinheiro. Muito tempo depois, veio a resposta. 

U’ma cartinha curta, seca, cheia de desculpa. Por arte do diabo, naquele ano a borracha baixou de preço e eu não pudia volta ao Ceará. Mermo assim, todo o saldo que tirei mandei p’ra minha mãe e p’ra Maria. E nunca mais veio nutiça. Eu perdi o gosto de trabaiá. Vivia jururu, pelos canto, feito u’a porqueira, sem prestá mais p’ra nada.

Em dezembro, chegou o navio carregado de brabo do Ceará. Logo do barrando, avistei a bordo u’a cara conhecida. Era meu primo Zuza, que vinha cumo eu, tenta fortuna no Acre.Um alegrão quando se avistemo. Nós sempre fumo amigo. Se apertemo num abraço que foi difícil de desagrudá. Depois, garremo aconversá, e eu pedi notiça da Maria. Meu primo espiou p’ra mim, muito tempo, um olhá de admirado, e dixe: “Primo Bazilio!...que é isso? Sempre te conheci um rapaz de vergonha e sentimento. Apois tu inda tem corage de te alembrá daquela muié?!...” Eu, inocente como tava, respondi: “ Mas, pruquê, primo Zuza? Ela não é minha noiva? “

- Entonce ele vendo que eu inguinorava, passou a me conta toda a desgraça. Fazia quaje dois anos que a ingrata havia fugido de casa, com um paiaço de circo de cavalin, que apareceu no povoado, perto da fazenda!
- Mas casou-se? - pergunto, interessado pelo final da história.
- Casou-se nada!  - responde ele, num gesto de repulsa.
- Ficou sendo muié-dama. O severgôin botou a escandelosa  p’ra dança e fazê pulutrica no arame.
Faz uma pausa, respira forte e continua, mais calmo:
- Mas o pió eu vou conta. O mau procedimento da marvada inda não é nada. Fugindo com outro ela provou que não prestava, não merecia minha amizade. O que mais me fez sofrê foi a mágoa da treição. Meu primo cunheceu o tal paiaço. Um sujeito preguiçoso e descarado.! Pela data eu vi que a ultima carta de Maria foi feita quando ela já tava na companhia do tal tipo. E o desgraçado arrecebia todo o dinheirin que eu mandava e não entregava nem a parte da minha pobre mãezinha!...Ah! moço, Isso é demais! Eu aqui, me esburrachando de trabaiá, fazendo colomias  prumode sustenta, quaje dois ano, o amante da minha noiva...

Os olhos do cabo cintilam de justa indignação. Meneia a cabeça num gesto de desalento e acrescenta:

        - E quando me alembro que, por causa daquela ingrata, eu deixei minha mãe sozinha, e vim m’bora atrás de recurso p’ra  casá! Ela tanto me pediu, chorando que eu não viesse. O único filho que tem sou eu! Hoje, tô velho e doente. Tenho vontade de volta p’rá junto dela e não posso!...
- E sua mãe ainda vive¿ - indago admirado.

E ele, respeitoso, tirando o chapéu:

- Graças a Deus! É u’a velhinha bôa moço. U’a velhinha santa! O ano passado ela me mandou u’a carta. Há que tempo não me escrevia...U’a carta de fazê dó. Pede que eu volte. Deseja me abraça, antes de morre. Eu já mandei lê a carta quatro vez, mas inda não ouvi o fim...
- Não ouviu o fim¿ Por que?

E o velho caboclo, a voz trêmula de emoção, os olhos marejados de lágrimas explicou: - Pruquê começo a chorá...Sinto u’a dor aqui dentro...u’a saudade danada, cutucando o coração!

Sinceramente penalizado, arrependi-me de haver provocado tão dolorosa confidencia. No meio do rio atingimos o ponto confluente, onde as águas do Murú, encontrando as do rio Tarauacá, tornam a correnteza mais forte.,

Rapido como que automaticamente, Bazilio enxuga as lágrimas na manga da blusa e, com algumas fortes remadas, vence a distancia que nos separa do barranco. Em ágil manobra, segurando o remo verticalmente à guisa de leme, encosta a canoa, pula em terra e me dá a mão para que eu desembarque.
Gratifico-o e ele, de chapéu na mão, agradece com um sorriso de bondade:
- Obrigado moço. Sempre às ordes.

É quase noite. Ouço o apitozinho agudo da usina elétrica. Na rua do comércio, acendem-se as lâmpadas. De cima do barranco, volto-me e vejo, lá em baixo, o vulto do velho canoeiro, reembarcando para continuar sua faina. Aceno para ele com o último adeus.

Obs: Essa história é a história de muitos Arigós que vieram para a Amazônia na ilusão de ganhar muito dinheiro e retornar para o seio de suas famílias. Infelizmente a grande maioria nunca conseguiu retornar. Tombaram nas florestas, nos rios, nas cidadezinhas, nas garras das onças, nas pontas flechas de índios, nos hospitais – vítimas de sezão, malária, febre amarela, impaludismo e beri-beri. 

NOTA:

*O rio Tarauacá é um curso de água que banha os estados do Acre e Amazonas, no Brasil. É afluente de margem direita do rio Juruá. Desagua no rio Juruá, do qual é afluente de margem direita, frente à cidade de Eirunepé, no estado do Amazonas.
O rio já atingiu pontos críticos devido às chuvas na região, tendo sido protagonista de uma enchente histórica em novembro de 2014. Em janeiro de 2016, o rio atingiu a cota de alerta, que é de 8,50 metros.

** Tarauacá é um município brasileiro localizado no noroeste do estado do Acre. Está distante 400 km da capital do estado, Rio Branco. Sua população, de acordo com estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), era de 40 024 habitantes em 2017, o que a coloca na posição de 4ª mais populosa de seu estado. Ocupa o terceiro lugar entre os municípios do estado em extensão territorial, com uma área de 15.553,43 km².

O município de Tarauacá originou-se do Seringal Foz do Muru, que foi criado na confluência do Rio Tarauacá com o Rio Muru, transformando-se em povoado com o passar do tempo. Fundado em 1º de outubro de 1907, por Antônio Antunes de Alencar, o povoado foi transformado em vila e batizado de "Seabra". Obteve sua autonomia através do Decreto Federal 9 831, de 23 de outubro de 1912, tornando-se, então, município.

Tarauacá é conhecido como "a terra do abacaxi gigante". Esse fruto chega a pesar em torno de 15 kg, fato que provoca grande admiração nos visitantes. A cidade é dotada de razoável infraestrutura turística. Conta com hospedarias, bares, hotéis e restaurantes, onde sempre se encontram pratos à base de peixes nobres da região, dentre outras especialidades.

O município de Tarauacá se tornou famoso no Brasil e no mundo após o programa Globo Repórter exibir uma matéria sobre as "Riquezas Amazônicas" que foi ao ar em 08 de dezembro de 2006. A reportagem mostra que além de produzir uma espécie de abacaxi gigante, também comprova que uma combinação de ervas que só existem na região, é capaz de fazer crescer cabelo em quem tem calvície. Carlos Pinto da Silva, o seringueiro que se virou cientista ao desenvolver o "Shampoo Esperança", diz que jamais revelará o segredo da sua fórmula milagrosa, tão cobiçada pelas indústrias de cosméticos.

*** origem da palavra tarauacá

A palavra TARAUACÁ vem do povo indígena Kaxinawá (Kaxi=morcego, Nawá=povo, portanto, povo do morcego), falantes da língua Pano (Pano= o grande tatu), e que se autodenominam Huni-kuĩ, isto é, os “verdadeiros homens”, que falam o Rã-txa, a “língua verdadeira”. TARAUACÁ, a escrita original seria TARÁWAKÁ (tará=tronco de árvore, waká=rio). Por isso Tarauacá, “rio das tronqueiras”.


Fonte: Livro SAPUPEMA - Contos Amazônicos
Autor: Jornalista JOSÉ POTYGUAR




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