quarta-feira, 12 de dezembro de 2018




Amazônia: Ciclo da Borracha
Lutas, sonhos e dramas humanos

A Revolta do seringueiro Gonçalo

Dando continuidade às histórias da epopeia dos nordestinos que foram enganados pelas promessas de enriquecimento através da extração de leite de seringueira, vamos relatar mais um conto do nosso *SAPUPEMA, do ilustre jornalista acreano JOSÉ POTYGUAR.

Anoitece. Após um dia de trabalho intenso, no vai-e-vem dos seringueiros embarcando mercadoria, o gaiola se prepara para partir. Terminado o embarque de oitenta toneladas de borracha, cessou o burburinho no porto, agora deserto, iluminado pelos holofotes de boreste, que clareiam a prancha e os desvãos lamacentos do barranco, até o aceiro da mata. Tomadas as últimas providencias, aguarda-se, apenas, o desembarque do proprietário do seringal, que palestra animadamente, saboreando mais uma cerveja, no camarote do comandante. 

Emergindo da escuridão, um homem se aproxima, lentamente, da margem do rio e fica parado no barranco, sob a luz forte dos holofotes de bordo. Baixo, musculoso, pescoço curto sustentando a cabeça chata, não deixa dúvida quanto a sua origem: um dos muitos nordestinos emigrados para a lendária região dos seringais.

De repente, um silvo agudo avisa que o navio vai partir. Abraçando o comandante, que veio trazê-lo até o portaló, o gordanchudo coronel desembarca, charuto na boca, pisando, cuidadosamente, a prancha escorregadia. Avistando o seringueiro, que continua imóvel, no alto do barranco, pergunta-lhe:

- Que faz você aí, rapaz? Não vê que esta atrasado? O jantar já está atrasado na hospedagem. - Não quero jantar – responde o seringueiro, com voz soturna. - Por quê¿ Está doente? - Nhôr não!

- Ah! Já sei... Você não tem jeito! Há um ano no seringal e não se conforma. Não pode ver um navio partir. Acho que vou proibir sua vinda ao barracão em época de repiquetes. Ao centro do seringal não vai navio. Diz o ditado: o que os olhos não veem o coração não deseja! - Será que também é proibido ter saudade? - pergunta o seringueiro. - Saudade?

- É, patrão. Vosmecê não sente isso. Tem conforto, boa casa, a companhia da esposa...Mas um cristão sozinho, socado no fundo desse mundão de floresta, sente o amargo da solidão. Sofre o que o diabo enjeitou! Se vosmicê nunca sofreu desse mal, eu lhe digo: Saudade é uma dor danada; uma dor que dói dentro, cutucando o coração da gente!

- Compreendo, Gonçalo – concorda o coronel. – Mas, para ir embora, é preciso ter saldo. Você, apesar de trabalhador, ainda não juntou nada. Trabalhou um ano, mas a borracha que fez, mal deu p’ra pagar sua passagem e o rancho que comeu. Continuando a subir o barranco, conclui num conselho:

- Coragem, rapaz! Saudade não enche barriga nem compra passagem!
O seringueiro nada responde. Continua de pé, sobre o barranco, olhando o movimento da tripulação, na faina de desatracar o navio. Numa visão retrospectiva, pôs-se a relembrar fatos da sua vida: órfão de pai, aos quatorze anos, foi viver em companhia da mâe e da irmã, na fazendola de sua avó materna, próximo à cidade de Canindé, la no Ceará. Ali começou a vida pela vida, trabalhando na lavoura. Ativo e muito honesto, logo se impôs à confiança de outro agricultor, seu vizinho, mais velho e de algumas posses, que lhe propôs sociedade.

Durante alguns anos, progrediu e já pensava em noivar com a filha do sócio – a Maria da Conceição, uma morena bem feita, com dois olhos negros a iluminar-lhe a beleza do rosto. Muito nova, Conceição, além da timidez, era controlada pela vigilância da mãe que, embora reconhecendo as qualidades de Gonçalo, achava o namoro precipitado. Mas, o pai aprovava e, quando Conceição completou dezoito anos, ficou noiva, sem época marcada para o casamento.

De repente, desmoronando esses planos, sobreveio uma terrível seca, com seu dantesco cortejo de misérias. Sem a benção das chuvas, perderam-se as sementes e todo o gado morria, branquejando de ossadas os caminhos do sertão *comburido. Continuar ali seria condenar-se a morrer de inanição, porque trabalho não havia. O jeito era emigrar. Com essa decisão, comprou uma passagem de trem para Fortaleza. O dinheiro que restava deixou-o com a mãe, prometendo ajuda-la de onde estivesse.

Na estação ferroviária, despediu-se da noiva e beijou a velhinha, que o abençoou, banhada em lágrimas. Contendo-se para não chorar, entrou no trem. Da janela do vagão, avistou, na plataforma, os vultos das duas mulheres, até sumirem na volta da estrada. Fortaleza era o empório para onde acorriam os flagelados de todo o Estado. As frentes de trabalho, nas obras do governo, já estavam superlotadas. Não havia vagas, apesar de as diárias mal darem para enganar a fome.

Aceitando o convite de um *paroara, que agenciava pessoal para o trabalho da borracha, embarcou num *Loide, rumo a Belém, e veio parar naquele seringal. A principio estranhou muito a diferença de clima, a alimentação e os hábitos daquela vida selvagem, sem ter com quem conversar, sepultado vivo, no centro da floresta. Mas, com muita coragem e a tenacidade nordestina, enfrentou todas as dificuldades, dedicando-se de corpo e alma ao trabalho.

Sua meta era juntar algum dinheiro para regressar e recomeçar a vida no sertão de Canindé. Trabalhava sem parar. Madrugando na estrada de seringa, entrava pela noite, defumando leite, para recomeçar a labuta rotineira, na madrugada seguinte. Arredio e caladão, recusava convites para aniversários e forrós que os companheiros realizavam aos sábados, no barracão, onde só aparecia forçado pela necessidade de comprar algum rancho ou munição de caça.

Durante o ano, não tivera noticia da família. Só agora, por esse navio, chegou-lhe uma carta do ex-sócio, com um recado da mãe. Alquebrada pela idade, a velhinha lhe pede que volte. Não quer morrer sem abençoá-lo pela última vez. A carta trouxe também a alvissareira noticia de principio de inverno no sertão. O chamado da mãe reforçado pela informação de inverno no Nordeste, alvoroçou seu coração pelo desejo de voltar. Um ano de trabalho e sacrifício, vivendo como bicho, no meio da floresta, dava-lhe direito ao que mais aspirava.

Cheio de esperança, foi ao armazém falar com o patrão. Mostrou-lhe a carta recebida e pediu sua conta, esclarecendo que resolvera ir embora. Lida a carta, o dono do seringal respondeu-lhe com uma cruel desilusão:

- Ir embora como Gonçalo? - No navio, patrão. - Claro, você não pode ir nadando, daqui ao Ceará. Mas com que dinheiro você pretende viajar? - Com meu saldo. Pra isso trabalhei um ano inteiro. Abrindo uma gaveta, o coronel mostrou ao seringueiro o extrato da sua conta corrente, Na coluna do haver, estava creditado o liquido da borracha por ele produzida. Na do débito, além do preço da sua passagem, desde Fortaleza, estavam lançadas todas as despesas com mantimentos, remédios, um rifle, munição e utensílios de trabalho, tudo perfazendo um total equivalente ao crédito.

- Tá vendo Gonçalo? Não me oponho a que você parta, pois estamos quites. Mas, as passagens no gaiola e no Loide?...Você vai viajar sem dinheiro?

Sombrio e carrancudo, Gonçalo olhou de relance a folha cheia de algarismo, deu um murro no balcão e saiu sem dizer uma única palavra. Com o desespero na alma, foi juntar-se aos companheiros e trabalhou até o anoitecer no serviço de embarque da borracha. Conduzindo ao ombro as redondas pelas, lembrava-se que várias foram molhadas pelo seu suor; tinham o peso das amarguras e tristezas por ele curtidas, durante um ano, na solidão da mata. Agora isso não lhe rende nem o preço de uma passagem de terceira classe, para se libertar daquele cativeiro!...

Esta é mais uma história de Arigós que vieram para a Amazônia na ilusão de ganhar muito dinheiro e retornar para o seio de suas famílias. Infelizmente a grande maioria nunca conseguiu retornar. Tombaram nas florestas, nos rios, nas cidadezinhas, nas garras das onças, nas pontas flechas de índios, nos hospitais – vítimas de sezão, malária, febre amarela, impaludismo e beri-beri. 

Nota:

*Comburido = que se comburiu ou queimou
*Paroara =comerciante natural do Pará
*Lloyd Brasileiro -Companhia de Navegação Lloyd Brasileiro, foi uma companhia estatal ou paraestatal, de navegação brasileira, fundada em 19 de fevereiro de 1894, no ano de vigência da Constituição que se sucedeu a Proclamação da República, após o governo do marechal Deodoro da Fonseca. Pela incorporação ou encampação de diversas empresas de navegação. A empresa foi extinta em outubro de 1997, durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso com o plano nacional de desestatização.


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