AMAZÔNIA: Ciclo da
borracha
Tragédia no
Seringal do 41
Nas margens do igarapé
Esperança, no município de Seabra, Estado do Acre, ficava o seringal do senhor
João Alves e d. Isabel. O casal era natural de Canindé no estado do Ceará e
migrou para o Acre no período da seca de 15. O casal tinha duas filhas, a
Chiquinha e a Maria. O senhor João Alves e sua família gozavam de grande
prestígio na comunidade, Era uma família muito trabalhadora e cumpridora de
seus compromissos. Como o casal não tinha filho homem, as três mulheres
ajudavam o velho nos mais árduos trabalhos: cortavam seringa, defumavam o
leite, brocavam o roçado, plantavam, e capinavam de enxada. Ali todos produziam
para o mesmo fim.
Viviam modestamente, porém
felizes. No comércio de Seabra, o velho João Alves tinha crédito ilimitado.
Comprava quanto queria e pagava pontualmente, em borracha ou em cereais. Todos
o respeitavam, como cidadão honesto e trabalhador. Dona Isabel e as filhas, quando
iam à cidade eram bem acolhidas pelas principais famílias, em cujo seio
desfrutavam de sincera estima e consideração.
Quando perguntada se
pretendiam retornar ao Ceará dons Isabel saia com a seguinte explicação:
“A gente vem do
Ceará, na intenção de voltar logo. Mas...isto aqui é uma ilusão. O tempo passa
e não se ganha com que voltar. Depois vem os filhos. A gente vai se acostumando
e querendo bem à terra. A barraca fica velha, é preciso levantar outra melhor,
que dure mais”....
- Hoje, já nem posso pensar em
voltar ao meu sertão. Vontade, muita! Mas, as filhas estão moças. Daqui há
pouco, casam. Não tenho coragem de me separar delas. O jeito é enterrar os
ossos por aqui mesmo.
A filha mais nova
era um primor de morena no desabrochar dos seus quinze anos. Esbelta, de
regular estatura, com uma acentuada infantilidade na delicadeza dos traços, com
um olhar inocente, com um indisfarçável acanhamento. O rosto oval,
róseo-acetinado é de uma formosa criança. Mas a florescência da puberdade já se
manifestava no contorno dos seios modelares, dando ao seu busto o acabamento de
mulher feita. Os cabelos castanhos e ondeados, soltos sobre as espáduas.
Os rapazes da
redondeza suspiravam de desejo e encantamento. Tinha um em especial, que vivia
a cercar a mesma com galanteios e até mesmo convites para casamento. Era o
soldado João Gretinha. João Gretinha era um sujeito mal visto pela comunidade,
pois era metido a arruaças, a confusões, não cumpridor dos seus deveres, um
verdadeiro mau caráter.
Sobre a sua
pretensão de se casar com a Maria D. Isabel costumava dizer que não tinha
criado filha para entregar na mão de um mequetrefe igual ele. Um reles soldado
de policia¿ ...Prefiro ver o enterro dela!
- Esse sujeito
andava aqui influído pro lado da Maria. Teve até o atrevimento de me falar
sobre casamento. Mas eu corri com ele de casa. Disse-lhe na cara, que se
enxergasse. Minha filha não é pro bico dele!
Um certo dia, numa
diligência que conduzia um preso, o policial João Gretinha afastou-se da
escolta, sob o pretexto de beber água na barraca de João Alves. Aproximando-se
cautelosamente, viu que não havia ninguém em casa. Como conhecia os hábitos da
família, sabia que estavam todos no roçado.
Por uma infeliz coincidência, o dono da casa estava ausente. Encontrando
apenas as mulheres, João gretinha interpelou a velha sobre o motivo porque se
opunha ao seu casamento com Maria.
Usando da
franqueza e da energia que lhe eram habituais, dona Isabel respondeu:
- Seu João, já lhe
disse que nem eu nem meu marido queremos tal casamento. Minha filha, além de
muito nova, não é prá casar com soldado! Não insista! Se o senhor tivesse
sentimentos, nem aparecia mais em nossa barracha!
Indignado com as palavras da senhora, o perverso
policial retrucou:
- Pois fique
sabendo que eu vim, hoje, resolvido a liquidar este assunto! A Maria há de ser
minha, quer a senhora queira, quer não!
E, incontinenti,
puxando bala para a agulha, matou a pobre senhora, com dois tiros de fuzil, e
embrenhou-se na mata, levando a moça.
No dia seguinte, a
cidade amanheceu em polvorosa. A grande tragédia se espelha com pólvora. “João
gretinha matou a velha Isabel e raptou a Maria”,
A dolorosa notícia
estarrece e penaliza todo mundo. Todos condenam a conduta do soldado, que não
pensou duas vezes antes de destruir um lar pobre, porém honrado e feliz.
As autoridades
tomam imediatas providências. Sob o comando do próprio delegado, numerosa
diligência segue para o local do crime, levando também um médico, a fim de
fazer exame de corpo de delito. O cadáver é encontrado na mesma posição em que
caíra a vítima, prostrada pelas balas. O exame pericial constata dois
ferimentos, ambos mortais: um sobre o peito esquerdo, ficando o projétil
alojado no pulmão; outro, no pescoço, rasgando a carótida.
Durante vários
dias, a escolta policial percorreu a mata dos seringais vizinhos, a procura do
criminoso e de sua infeliz companheira. Tudo debalde. Encerrado o inquérito
policial, a promotoria apresentou a denuncia à revelia do réu.
Com o correr do
tempo, começaram a surgir vagos indícios do casal fugitivo. Ora era o
desaparecimento de um rifle de uma barraca; ora era um seringueiro que, ao
retornar do trabalho, tinha a decepção de não encontrar o jantar que guardara.
Ao lado da panela vazia, um pedaço de papel com um nome garatujado em péssimo
português, assinava – “João Gretinha”.
Esses boatos,
enfeitados de pormenores que os comentários sempre acrescentavam, iam tomando
vulto e criando um ambiente de mistério em torno da vida errante do casal
fugitivo. Todo roubo, qualquer objeto desaparecido das barracas, era logo
atribuído a João gretinha. Muito tímido, a princípio, ele ia, aos poucos, se
tornando mais ousado. A impunidade estimulava-o. Já era visto em pleno dia
pelas estradas, e chegava à petulância de mandar recados desafiando a policia e
as autoridades. As autoridades decidiram que tal abuso não podia continuar.
Outra diligencia,
sob o comando de um cabo, foi enviada ao encalço do réu. Após dias de
cautelosas pesquisas feitas pela mata, a policia consegue descobri-lo numa velha
barraca abandonada. Ao contrário do que se esperava, ele não apresentou
resistência. Vendo-se cercado, entrega-se com a mais vergonhosa pusilanimidade.
Mas, está só. Não houve meio de confessar o esconderijo da moça. Preso e
algemado, foi conduzido com a máxima prudência. Durante os pernoites na mata,
um soldado ficava de sentinela, ao lado dele.
Na manhã do dia em
que deveria chegar à cidade, João Gretinha, mostrando ao sentinela os pulsos
inchados pela pressão das algemas, pede-lhe, por caridade, que retire os
ferros, por alguns momentos, para aliviar um pouco.
Compadecido, o outro
atende. Apenas se vê livre, Gretinha de um pulo, arranca o sabre da cinta do
próprio soldado, desfere-lhe um tremendo golpe no ventre e desaparece na mata,
em desabalada carreira.
Ouvindo gemidos,
os outros soldados despertam e encontram o companheiro com forte hemorragia, já
moribundo. Essa façanha, mixto de covardia, perversidade e ingratidão,
propagou-se de seringal em seringal, adulterada, sob um falso aspecto de
coragem e audácia, emprestando à figura do reles policial uma triste
celebridade de Lampião-mirim da floresta amazônica.
E dele não se teve mais notícias, durante alguns
meses.
Um certo dia o
Juiz de direito da Comarca recebeu uma carta de um coronel, proprietário de um
seringal, comunicando haver aparecido lá, pedindo trabalho, um homem
acompanhado de uma jovem. Suspeitando tratar-se de João Gretinha, - cuja triste
fama chegara até aquele longínquo seringal, o dito coronel prendeu-o e
conservou-o trancado, à disposição das autoridades.
Imediatamente foi enviado
um batelão com dez soldados, sob o comando de um sargento, para trazer o casal.
E, quando dias depois, retorna a diligência, abala-se a pequena cidade. Várias
pessoas acorrem ao porto, levadas pela curiosidade, talvez maior, de rever a
infeliz mulher que desprezara a paz do lar paterno, o seio acolhedor daquela
sociedade que tanto a estimava, sacrificara o seu futuro, a mocidade, a própria
reputação, chafurdando sua pureza no charco de um desgraçado amor. E, para
isso, suporta durante meses, em plena floresta, uma vida de constantes perigos
e sobressaltos.
Entre janelas
repletas de famílias, o triste cortejo desfila pela principal rua da cidade.
Adiante algemado, entre soldados embalados, João Gretinha encarava a população,
ostentando um sorriso cínico. Mais atrás, apoiada ao braço de um oficial de
justiça, a desventurada Maria, muito pálida, a cabeça baixa, o andar trôpego,
ao peso do ventre avolumado pela adiantada gravidez. Além disso, um terrível
impaludismo ia aos poucos, minando seu organismo. Tinha as pernas inchadas e os
pés feridos pelos espinhos, nas longas caminhadas através da mata. Era uma
sombra da linda menina de antes de se juntar àquele sujeito infeliz.
Foi recolhida a
uma casa de família, vivendo solitária, calada, distante, dentro de um quarto. Limitava-se
a responder o que se lhe perguntavam. Se algum tocava no assunto da sua fuga
infeliz, ela chorava e permanecia muda. Apesar dos cuidados que lhe dispensavam
algumas famílias caridosas, sua saúde se agravou celeremente. Passou a ter vertigens
e febre. Recusava os remédios, mal tocava nos alimentos. A fraqueza se
acentuou, até que, em certa madrugada, morreu, sem sequer pronunciar uma
queixa.
Ao enterro compareceram várias famílias e pessoas
amigas dos pais da infeliz Maria.
La estava o seu
velho pai. Pálido, barbado, magro, cabeça baixa. Porém muito calmo.Assiste ao
enterro com fria serenidade, um quase indiferentismo, como se aquilo fosse um
ato banal, ou não fosse ele o pai da morta.
Aos amigos saia
com a seguinte explicação:
- Hoje, foi apenas
o enterro. Prá mim ela morreu desde o dia em que fugiu de casa.
- Foi melhor
assim. Pra que chorar¿ Estou satisfeito: ela morreu antes do filho nascer!
- Sim. Porque, ao
menos, não ficou raça daquele bandido na minha família!
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