quarta-feira, 12 de dezembro de 2018




AMAZÔNIA: Ciclo da borracha

Tragédia no Seringal do 41

Nas margens do igarapé Esperança, no município de Seabra, Estado do Acre, ficava o seringal do senhor João Alves e d. Isabel. O casal era natural de Canindé no estado do Ceará e migrou para o Acre no período da seca de 15. O casal tinha duas filhas, a Chiquinha e a Maria. O senhor João Alves e sua família gozavam de grande prestígio na comunidade, Era uma família muito trabalhadora e cumpridora de seus compromissos. Como o casal não tinha filho homem, as três mulheres ajudavam o velho nos mais árduos trabalhos: cortavam seringa, defumavam o leite, brocavam o roçado, plantavam, e capinavam de enxada. Ali todos produziam para o mesmo fim.
Viviam modestamente, porém felizes. No comércio de Seabra, o velho João Alves tinha crédito ilimitado. Comprava quanto queria e pagava pontualmente, em borracha ou em cereais. Todos o respeitavam, como cidadão honesto e trabalhador. Dona Isabel e as filhas, quando iam à cidade eram bem acolhidas pelas principais famílias, em cujo seio desfrutavam de sincera estima e consideração.

Quando perguntada se pretendiam retornar ao Ceará dons Isabel saia com a seguinte explicação:

“A gente vem do Ceará, na intenção de voltar logo. Mas...isto aqui é uma ilusão. O tempo passa e não se ganha com que voltar. Depois vem os filhos. A gente vai se acostumando e querendo bem à terra. A barraca fica velha, é preciso levantar outra melhor, que dure mais”....

- Hoje, já nem posso pensar em voltar ao meu sertão. Vontade, muita! Mas, as filhas estão moças. Daqui há pouco, casam. Não tenho coragem de me separar delas. O jeito é enterrar os ossos por aqui mesmo.

A filha mais nova era um primor de morena no desabrochar dos seus quinze anos. Esbelta, de regular estatura, com uma acentuada infantilidade na delicadeza dos traços, com um olhar inocente, com um indisfarçável acanhamento. O rosto oval, róseo-acetinado é de uma formosa criança. Mas a florescência da puberdade já se manifestava no contorno dos seios modelares, dando ao seu busto o acabamento de mulher feita. Os cabelos castanhos e ondeados, soltos sobre as espáduas.

Os rapazes da redondeza suspiravam de desejo e encantamento. Tinha um em especial, que vivia a cercar a mesma com galanteios e até mesmo convites para casamento. Era o soldado João Gretinha. João Gretinha era um sujeito mal visto pela comunidade, pois era metido a arruaças, a confusões, não cumpridor dos seus deveres, um verdadeiro mau caráter.

Sobre a sua pretensão de se casar com a Maria D. Isabel costumava dizer que não tinha criado filha para entregar na mão de um mequetrefe igual ele. Um reles soldado de policia¿ ...Prefiro ver o enterro dela!
- Esse sujeito andava aqui influído pro lado da Maria. Teve até o atrevimento de me falar sobre casamento. Mas eu corri com ele de casa. Disse-lhe na cara, que se enxergasse. Minha filha não é pro bico dele!
Um certo dia, numa diligência que conduzia um preso, o policial João Gretinha afastou-se da escolta, sob o pretexto de beber água na barraca de João Alves. Aproximando-se cautelosamente, viu que não havia ninguém em casa. Como conhecia os hábitos da família, sabia que estavam todos no roçado.  Por uma infeliz coincidência, o dono da casa estava ausente. Encontrando apenas as mulheres, João gretinha interpelou a velha sobre o motivo porque se opunha ao seu casamento com Maria.
Usando da franqueza e da energia que lhe eram habituais, dona Isabel respondeu:
- Seu João, já lhe disse que nem eu nem meu marido queremos tal casamento. Minha filha, além de muito nova, não é prá casar com soldado! Não insista! Se o senhor tivesse sentimentos, nem aparecia mais em nossa barracha!

Indignado com as palavras da senhora, o perverso policial retrucou:

- Pois fique sabendo que eu vim, hoje, resolvido a liquidar este assunto! A Maria há de ser minha, quer a senhora queira, quer não!
E, incontinenti, puxando bala para a agulha, matou a pobre senhora, com dois tiros de fuzil, e embrenhou-se na mata, levando a moça.
No dia seguinte, a cidade amanheceu em polvorosa. A grande tragédia se espelha com pólvora. “João gretinha matou a velha Isabel e raptou a Maria”,
A dolorosa notícia estarrece e penaliza todo mundo. Todos condenam a conduta do soldado, que não pensou duas vezes antes de destruir um lar pobre, porém honrado e feliz.
As autoridades tomam imediatas providências. Sob o comando do próprio delegado, numerosa diligência segue para o local do crime, levando também um médico, a fim de fazer exame de corpo de delito. O cadáver é encontrado na mesma posição em que caíra a vítima, prostrada pelas balas. O exame pericial constata dois ferimentos, ambos mortais: um sobre o peito esquerdo, ficando o projétil alojado no pulmão; outro, no pescoço, rasgando a carótida.

Durante vários dias, a escolta policial percorreu a mata dos seringais vizinhos, a procura do criminoso e de sua infeliz companheira. Tudo debalde. Encerrado o inquérito policial, a promotoria apresentou a denuncia à revelia do réu.

Com o correr do tempo, começaram a surgir vagos indícios do casal fugitivo. Ora era o desaparecimento de um rifle de uma barraca; ora era um seringueiro que, ao retornar do trabalho, tinha a decepção de não encontrar o jantar que guardara. Ao lado da panela vazia, um pedaço de papel com um nome garatujado em péssimo português, assinava – “João Gretinha”.

Esses boatos, enfeitados de pormenores que os comentários sempre acrescentavam, iam tomando vulto e criando um ambiente de mistério em torno da vida errante do casal fugitivo. Todo roubo, qualquer objeto desaparecido das barracas, era logo atribuído a João gretinha. Muito tímido, a princípio, ele ia, aos poucos, se tornando mais ousado. A impunidade estimulava-o. Já era visto em pleno dia pelas estradas, e chegava à petulância de mandar recados desafiando a policia e as autoridades. As autoridades decidiram que tal abuso não podia continuar.
Outra diligencia, sob o comando de um cabo, foi enviada ao encalço do réu. Após dias de cautelosas pesquisas feitas pela mata, a policia consegue descobri-lo numa velha barraca abandonada. Ao contrário do que se esperava, ele não apresentou resistência. Vendo-se cercado, entrega-se com a mais vergonhosa pusilanimidade. Mas, está só. Não houve meio de confessar o esconderijo da moça. Preso e algemado, foi conduzido com a máxima prudência. Durante os pernoites na mata, um soldado ficava de sentinela, ao lado dele.

Na manhã do dia em que deveria chegar à cidade, João Gretinha, mostrando ao sentinela os pulsos inchados pela pressão das algemas, pede-lhe, por caridade, que retire os ferros, por alguns momentos, para aliviar um pouco. 
Compadecido, o outro atende. Apenas se vê livre, Gretinha de um pulo, arranca o sabre da cinta do próprio soldado, desfere-lhe um tremendo golpe no ventre e desaparece na mata, em desabalada carreira.
Ouvindo gemidos, os outros soldados despertam e encontram o companheiro com forte hemorragia, já moribundo. Essa façanha, mixto de covardia, perversidade e ingratidão, propagou-se de seringal em seringal, adulterada, sob um falso aspecto de coragem e audácia, emprestando à figura do reles policial uma triste celebridade de Lampião-mirim da floresta amazônica.

E dele não se teve mais notícias, durante alguns meses.

Um certo dia o Juiz de direito da Comarca recebeu uma carta de um coronel, proprietário de um seringal, comunicando haver aparecido lá, pedindo trabalho, um homem acompanhado de uma jovem. Suspeitando tratar-se de João Gretinha, - cuja triste fama chegara até aquele longínquo seringal, o dito coronel prendeu-o e conservou-o trancado, à disposição das autoridades. 

Imediatamente foi enviado um batelão com dez soldados, sob o comando de um sargento, para trazer o casal. E, quando dias depois, retorna a diligência, abala-se a pequena cidade. Várias pessoas acorrem ao porto, levadas pela curiosidade, talvez maior, de rever a infeliz mulher que desprezara a paz do lar paterno, o seio acolhedor daquela sociedade que tanto a estimava, sacrificara o seu futuro, a mocidade, a própria reputação, chafurdando sua pureza no charco de um desgraçado amor. E, para isso, suporta durante meses, em plena floresta, uma vida de constantes perigos e sobressaltos.

Entre janelas repletas de famílias, o triste cortejo desfila pela principal rua da cidade. Adiante algemado, entre soldados embalados, João Gretinha encarava a população, ostentando um sorriso cínico. Mais atrás, apoiada ao braço de um oficial de justiça, a desventurada Maria, muito pálida, a cabeça baixa, o andar trôpego, ao peso do ventre avolumado pela adiantada gravidez. Além disso, um terrível impaludismo ia aos poucos, minando seu organismo. Tinha as pernas inchadas e os pés feridos pelos espinhos, nas longas caminhadas através da mata. Era uma sombra da linda menina de antes de se juntar àquele sujeito infeliz.
Foi recolhida a uma casa de família, vivendo solitária, calada, distante, dentro de um quarto. Limitava-se a responder o que se lhe perguntavam. Se algum tocava no assunto da sua fuga infeliz, ela chorava e permanecia muda. Apesar dos cuidados que lhe dispensavam algumas famílias caridosas, sua saúde se agravou celeremente. Passou a ter vertigens e febre. Recusava os remédios, mal tocava nos alimentos. A fraqueza se acentuou, até que, em certa madrugada, morreu, sem sequer pronunciar uma queixa.

Ao enterro compareceram várias famílias e pessoas amigas dos pais da infeliz Maria.
La estava o seu velho pai. Pálido, barbado, magro, cabeça baixa. Porém muito calmo.Assiste ao enterro com fria serenidade, um quase indiferentismo, como se aquilo fosse um ato banal, ou não fosse ele o pai da morta.

Aos amigos saia com a seguinte explicação:
- Hoje, foi apenas o enterro. Prá mim ela morreu desde o dia em que fugiu de casa.
- Foi melhor assim. Pra que chorar¿ Estou satisfeito: ela morreu antes do filho nascer!
- Sim. Porque, ao menos, não ficou raça daquele bandido na minha família!


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