quarta-feira, 12 de dezembro de 2018




Amazônia: Ciclo da Borracha
Lutas, sonhos e dramas humanos

A alforria de um seringueiro
Era quase noite quando o seringueiro Chico Machado voltou da mata. Gingando o corpanzil em largas passadas, atravessou o terreiro, galgou de um pulo o soalho da barraca e despejou todas as tijelinhas do saco que trazia às costas. Depois foi ao taperi do defumador, deslocou o buião, retirou a grande bacia do leite, amontoando tudo ao lado das tijelinhas. Aquela arrumação torturava a alma do caboclo. Visivelmente emocionado, a tristeza se estampava nas linhas severas do seu rosto queimado pelo sol.

Era a última noite que passava ali. Naquela pequena barraca vivera dez anos, desde que chegou ao seringal. No dia seguinte, embarcaria num gaiola, de regresso ao Ceará. O sonho acalentado pelo apego do cearense à terra natal ia, enfim, realizar-se. Apesar disso, como lhe custava abandonar tudo aquilo! A humilde barraquinha de palha, o taperi, os utensílios de trabalho, foram fiéis companheiros de dez anos, testemunhas silenciosas das suas horas de luta, de isolamento e de tristeza, sobretudo depois que a morte lhe roubara sua querida Luzia, vitimada pelo impaludismo.

O seu último dia de seringal! Ia mesmo deixar aquela selva que, a principio, tanto o atemorizava e, agora, já lhe era tão familiar! À proporção que lhe retemperava a fibra de nordestino, a natureza amazônica se deixava domar, revelando-lhe seus segredos, desvendando-lhe seus mistérios, descobrindo lhe suas riquezas.

Todo o dia fora tomado pelos preparativos da viagem. Pela manhã havia ido ao barracão – três horas distante dali – levar a pequena bagagem (algumas peças de roupa, a rede, o mosquiteiro) e a última pela de borracha – uma bonita esfera de 50 quilos, que encerrava brilhantemente a sua labuta de seringueiro trabalhador e honesto.

Voltando do barracão, estivera, pela última vez, na estrada do corte, a mesma trilha sinuosa e sombria que ele percorrera diariamente, durante dez anos. Parando junto a cada seringueira, para recolher as tijelinhas, Chico Machado sofria a saudade daquelas árvores amigas; tinha ímpeto de abraçar-se àqueles troncos riscados pelo gume de sua faca, de cujas feridas escorrera generosamente todo o rico látex que lhe garantiu o sustento e ia, agora, garantir-lhe o retorno ao sertão do seu querido Ceará.

Dezoito contos de saldo, era quanto ia receber do patrão. Nunca vira tanto dinheiro. A não ser o seu inseparável cachimbo, não tinha vícios; não jogava, não bebia. Também não era dado a luxos. Trajava simplesmente; gostava de andar limpo e nada mais. “P’ra quê viúvo velho enfeitado? ” – Costumava dizer.
Toda a sua economia visava um fim: educar a única filha, a Rosinha. E era isto o que mais concorria para apressar sua viagem. A filha era tudo para ele: estímulo, alegria, a razão de ser de sua vida. Trouxera-a do Ceará com 5 anos, apenas. Lembrava-se perfeitamente do pavor que lhe incutia a vida agreste no centro da mata, durante os primeiros tempos. Quando a mãe morreu, Rosinha completava dez anos. Na angústia dos últimos momentos, entre os delírios da febre alta, o instinto materno sobrepujou o sofrimento físico. Segurando a mão do marido, os olhos cheios de lágrimas, ela recomendou:
- Chico...cuida da Rosinha; olha pela menina! O mundo é cheio de perigos...sepultada a esposa, logo surgiu grande dificuldade. Obrigado a sair diariamente para o trabalho, ficando fora de casa a maior parte do tempo, com quem deixaria a criança?

Felizmente Dona Marieta, a esposa do patrão, gostava muito de Rosinha e era sua madrinha de crisma. Prontificou-se a receber a afilhada, que assim e passou a morar no barracão.

Ao pobre caboclo, muito custou separar-se da filha. Era um segundo golpe do destino na ferida ainda aberta pela morte recente da esposa. Enfim, não havia outra solução. Conformou-se com a certeza de que, em companhia da madrinha, a menina estava bem e aproveitaria, estudando, praticando costura e bordado, prendas em que Dona Marieta era exímia.

Aos domingos, Chico Machado ia infalivelmente visitar a filha, saber como estava, se necessitava de alguma coisa. Assim, decorreram mais cinco anos. Rosinha estava uma bonita moça, em pleno viço da puberdade. Chico Machado orgulhava-se, revendo na filha o retrato de sua inesquecível Luzia. Não saíra alta como ele. Tinha da mãe o mesmo porte delicado, os mesmos cabelos castanhos, abundantes e ondulados, a mesma doce expressão do olhar, - uns olhos escuros, um tanto cismadores. E à medida que a filha se fazia mulher, o pai redobrava de cuidados. Apesar de confiar em Dona Marieta, quando vinha do barracão não relaxava a vigilância, sempre atento para rechaçar com energia a investida de quem quer que fosse.

Certa vez, estando um gaiola no porto, o pessoal de bordo obteve permissão para improvisar um baile na sala do barracão. Tudo corria bem. A orquestra, composta de uma sanfona, um clarinete e dois violões, animava os pares. De fora, sentado no trapiche, o cachimbo no canto da boca, Chico Machado apreciava a festa, sem tirar os olhos da filha. A orquestra iniciou uma valsa. Um senhor bem trajado aproximou-se de Rosinha e, mesurosamente, deu-lhe o braço. Rosinha tinha permissão para dançar, mas só ali, na casa da madrinha. Em furdunços e forrós de seringueiros, nem era tola para por os pés.

Habituado às liberdades dos salões modernos, o cavalheiro enlaçou Rosinha apertando-a de encontro ao peito, num verdadeiro abraço. Chico Machado não se conteve. Levantou-se, entrou na sala e, sem dizer uma única palavra, ante a estupefação geral, puxou a filha pelo braço e foi sentá-la ao lado da madrinha. Decepcionado, o cavalheiro teve o ímpeto de tomar uma satisfação. Diante, porém, da massa agigantada do seringueiro, desistiu. Mas o guarda-livros do seringal, conhecido adulador, apressou-se a cochichar ao ouvido de Chico Machado: - P’ra que você fez isso homem de Deus? Aquele é o proprietário do navio!
Aí o caboclo perdeu a calma. No seu vozeirão grave e pausado, respondeu, bem alto: - Não me interessa saber quem seja! Se é seu amigo, vá em casa e traga sua mulher p’ra dançar com ele. Com a filha deste caboclo ele não dança! Era assim o homem. Franco, leal, aparentemente manso, mas ninguém lhe tocasse na filha! Virava bicho, não media consequências.

NOTAS:
Gaiolas são embarcações a motor que, no Brasil, fazem a navegação fluvial, como por exemplo no rio Amazonas ou no rio Tapajós. Originalmente eram barcos a vapor. Habitualmente são embarcações de acabamento tosco, onde o conforto é mínimo, e os passageiros dormem em redes no convés, o que, segundo a tradição oral, deu origem ao nome gaiolas, pois as redes balançam de um lado para o outro, tal como o balanço dos pássaros nas gaiolas. Ainda de acordo com a tradição oral, a primeira gaiola navegou no rio São Francisco em 1870. Atualmente muitas estão sendo transformadas em barcos para passeios turísticos (bateau mouche), e são uma das formas de melhor conhecer e viajar no interior do Brasil.
Fonte: Livro SAPUPEMA
Contos Amazônicos.
Autor: Jornalista JOSÉ POTYGUAR


Nenhum comentário:

Postar um comentário