A alforria de um seringueiro
Era quase noite quando o seringueiro Chico Machado
voltou da mata. Gingando o corpanzil em largas passadas, atravessou o terreiro,
galgou de um pulo o soalho da barraca e despejou todas as tijelinhas do saco
que trazia às costas. Depois foi ao taperi do defumador, deslocou o buião,
retirou a grande bacia do leite, amontoando tudo ao lado das tijelinhas. Aquela
arrumação torturava a alma do caboclo. Visivelmente emocionado, a tristeza se
estampava nas linhas severas do seu rosto queimado pelo sol.
Era a última noite que passava ali. Naquela pequena
barraca vivera dez anos, desde que chegou ao seringal. No dia seguinte,
embarcaria num gaiola, de regresso ao Ceará. O sonho acalentado pelo apego do
cearense à terra natal ia, enfim, realizar-se. Apesar disso, como lhe custava
abandonar tudo aquilo! A humilde barraquinha de palha, o taperi, os utensílios
de trabalho, foram fiéis companheiros de dez anos, testemunhas silenciosas das
suas horas de luta, de isolamento e de tristeza, sobretudo depois que a morte
lhe roubara sua querida Luzia, vitimada pelo impaludismo.
O seu último dia de seringal! Ia mesmo deixar
aquela selva que, a principio, tanto o atemorizava e, agora, já lhe era tão familiar!
À proporção que lhe retemperava a fibra de nordestino, a natureza amazônica se
deixava domar, revelando-lhe seus segredos, desvendando-lhe seus mistérios,
descobrindo lhe suas riquezas.
Todo o dia fora tomado pelos preparativos da
viagem. Pela manhã havia ido ao barracão – três horas distante dali – levar a
pequena bagagem (algumas peças de roupa, a rede, o mosquiteiro) e a última pela
de borracha – uma bonita esfera de 50 quilos, que encerrava brilhantemente a
sua labuta de seringueiro trabalhador e honesto.
Voltando do barracão, estivera, pela última vez, na
estrada do corte, a mesma trilha sinuosa e sombria que ele percorrera
diariamente, durante dez anos. Parando junto a cada seringueira, para recolher
as tijelinhas, Chico Machado sofria a saudade daquelas árvores amigas; tinha
ímpeto de abraçar-se àqueles troncos riscados pelo gume de sua faca, de cujas
feridas escorrera generosamente todo o rico látex que lhe garantiu o sustento e
ia, agora, garantir-lhe o retorno ao sertão do seu querido Ceará.
Dezoito contos de saldo, era quanto ia receber do
patrão. Nunca vira tanto dinheiro. A não ser o seu inseparável cachimbo, não
tinha vícios; não jogava, não bebia. Também não era dado a luxos. Trajava
simplesmente; gostava de andar limpo e nada mais. “P’ra quê viúvo velho enfeitado?
” – Costumava dizer.
Toda a sua economia visava um fim: educar a única
filha, a Rosinha. E era isto o que mais concorria para apressar sua viagem. A
filha era tudo para ele: estímulo, alegria, a razão de ser de sua vida.
Trouxera-a do Ceará com 5 anos, apenas. Lembrava-se perfeitamente do pavor que
lhe incutia a vida agreste no centro da mata, durante os primeiros tempos. Quando
a mãe morreu, Rosinha completava dez anos. Na angústia dos últimos momentos,
entre os delírios da febre alta, o instinto materno sobrepujou o sofrimento
físico. Segurando a mão do marido, os olhos cheios de lágrimas, ela recomendou:
- Chico...cuida da Rosinha; olha pela menina! O
mundo é cheio de perigos...sepultada a esposa, logo surgiu grande dificuldade.
Obrigado a sair diariamente para o trabalho, ficando fora de casa a maior parte
do tempo, com quem deixaria a criança?
Felizmente Dona Marieta, a esposa do patrão,
gostava muito de Rosinha e era sua madrinha de crisma. Prontificou-se a receber
a afilhada, que assim e passou a morar no barracão.
Ao pobre caboclo, muito custou separar-se da filha.
Era um segundo golpe do destino na ferida ainda aberta pela morte recente da
esposa. Enfim, não havia outra solução. Conformou-se com a certeza de que, em
companhia da madrinha, a menina estava bem e aproveitaria, estudando,
praticando costura e bordado, prendas em que Dona Marieta era exímia.
Aos domingos, Chico Machado ia infalivelmente
visitar a filha, saber como estava, se necessitava de alguma coisa. Assim,
decorreram mais cinco anos. Rosinha estava uma bonita moça, em pleno viço da
puberdade. Chico Machado orgulhava-se, revendo na filha o retrato de sua
inesquecível Luzia. Não saíra alta como ele. Tinha da mãe o mesmo porte
delicado, os mesmos cabelos castanhos, abundantes e ondulados, a mesma doce
expressão do olhar, - uns olhos escuros, um tanto cismadores. E à medida que a
filha se fazia mulher, o pai redobrava de cuidados. Apesar de confiar em Dona
Marieta, quando vinha do barracão não relaxava a vigilância, sempre atento para
rechaçar com energia a investida de quem quer que fosse.
Certa vez, estando um gaiola no porto, o pessoal de bordo obteve permissão para
improvisar um baile na sala do barracão. Tudo corria bem. A orquestra, composta
de uma sanfona, um clarinete e dois violões, animava os pares. De fora, sentado
no trapiche, o cachimbo no canto da boca, Chico Machado apreciava a festa, sem
tirar os olhos da filha. A orquestra iniciou uma valsa. Um senhor bem trajado
aproximou-se de Rosinha e, mesurosamente, deu-lhe o braço. Rosinha tinha
permissão para dançar, mas só ali, na casa da madrinha. Em furdunços e forrós
de seringueiros, nem era tola para por os pés.
Habituado às liberdades dos salões modernos, o
cavalheiro enlaçou Rosinha apertando-a de encontro ao peito, num verdadeiro
abraço. Chico Machado não se conteve. Levantou-se, entrou na sala e, sem dizer
uma única palavra, ante a estupefação geral, puxou a filha pelo braço e foi
sentá-la ao lado da madrinha. Decepcionado, o cavalheiro teve o ímpeto de tomar
uma satisfação. Diante, porém, da massa agigantada do seringueiro, desistiu.
Mas o guarda-livros do seringal, conhecido adulador, apressou-se a cochichar ao
ouvido de Chico Machado: - P’ra que você fez isso homem de Deus? Aquele é o
proprietário do navio!
Aí o caboclo perdeu a calma. No seu vozeirão grave
e pausado, respondeu, bem alto: - Não me interessa saber quem seja! Se é seu
amigo, vá em casa e traga sua mulher p’ra dançar com ele. Com a filha deste
caboclo ele não dança! Era assim o homem. Franco, leal, aparentemente manso,
mas ninguém lhe tocasse na filha! Virava bicho, não media consequências.
NOTAS:
Gaiolas
são embarcações a motor que, no Brasil, fazem a navegação
fluvial, como por exemplo no rio Amazonas ou no rio Tapajós. Originalmente eram barcos a vapor. Habitualmente são
embarcações de acabamento tosco, onde o conforto é mínimo, e os passageiros
dormem em redes no convés, o que, segundo a tradição
oral, deu origem ao nome gaiolas, pois as redes balançam de um lado para o
outro, tal como o balanço dos pássaros nas gaiolas. Ainda de acordo com a
tradição oral, a primeira gaiola navegou no rio São Francisco em
1870. Atualmente muitas estão sendo transformadas
em barcos para passeios turísticos (bateau mouche), e são uma das formas de
melhor conhecer e viajar no interior do Brasil.
Fonte: Livro SAPUPEMA
Contos Amazônicos.
Autor: Jornalista JOSÉ POTYGUAR
Para saber mais acesse: chagasprof.blogspot.com.br
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